'O pensamento é vago' por Mariana Loureiro (2022) - PDF Flipbook

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Elsa Alves

mudasse para uma casa-barco que estava
abandonada.

Yamir e Maya gostavam de visitar Raul
na sua casa-barco aparecendo sempre que
lhes apetecia. De início Raul sentia-se um
pouco invadido com a presença frequente
das crianças. Aos poucos Raul começara a
dizer algumas palavras em Hindu e a falar
sobre geografia aos dois irmãos. Descrevia
outros povos que falavam palavras difíceis
de entender. Raul explicava que os rios eram
como estradas infinitas que desaguavam
num mar imenso. Os irmãos nunca tinham
saído da aldeia, pelo que nem imaginavam
como seria o mar. Yamir abria muito os
olhos e absorvia cada palavra de Raul,

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Pendurado sobre o Abismo

mesmo quando lhe escapavam palavras em
espanhol, como aquela frase repetida “la
lluvia es una mujer, llena de humor”.
Sonhava que um dia iria navegar o rio
Ponnami numa canoa e descobrir em que
mar desaguava.

Mas algo ia mal naquele ano: não caía
uma única gota de chuva. Os aldeões
andavam inquietos. À sombra das árvores
discutiam se os deuses voltariam a enviar a
monção. Arjun, o ancião da aldeia disse: “a
monção virá, mas não virá com pressa”.

Os meses sucediam-se e a chuva não
vinha. As temperaturas do ar tinham
disparado, criando uma atmosfera sufocante.

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Elsa Alves

Anushka sentia-se cada vez mais fraca, com
dificuldade em colher as folhas de chá.
Frequentemente parava para descansar e
acabava por ser invadida por sonhos. A falta
de chuva originava que a água no rio
Ponnami fosse cada vez menos abundante.
Kamir, que sempre o conhecera a
transbordar e a inundar as margens de
terrenos férteis, sentia um enorme desalento
ao ver a vida do rio desaparecer, pois já não
conseguia pescar. Os campos agrícolas em
redor da aldeia iam ressecando debaixo do
sol intenso.

Um dia, depois do trabalho na plantação
de chá, Anushka chegara finalmente a casa e
decidiu descrever a Kamir os sonhos que

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Pendurado sobre o Abismo

tinha. Anushka disse-lhe que chegara a
altura de uma lua aparecer e tudo mudar.
Kamir achou que a mulher trabalhava
demasiado e que precisava de descansar,
desvalorizando os sonhos que Anushka
tinha. Nessa noite, Kamir reparou que uma
super-lua, grande e brilhante, preenchia o
céu e recordando as palavras da mulher ficou
preocupado. Nos dias seguintes, a super-lua
permaneceu visível no céu, quer de noite
quer de dia. Era como se o movimento da lua
tivesse congelado naquele instante, em que a
fase de lua cheia ocorre quando esta está
mais próximo da terra. Kamir e os outros
aldeões andavam assustados. Arjun decidiu
convocar Raul para que este explicasse o

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estranho fenómeno que atingira a aldeia.
Raul começou por descrever os movimentos
da terra e da lua e referir as suas fases mas,
para desapontamento dos habitantes da
aldeia, não apresentou nenhuma explicação
para a permanência de uma super-lua cheia
no céu. Raul escondeu que durante vários
dias já experienciara uma super-lua na
Cidade dos Mortos, mas a explicação era tão
fantástica que não quis correr o risco de
assustar os aldeões ou tornar-se motivo de
escárnio.

Cinco anos passaram desde o dia em que
a super-lua se instalara no céu, e nem uma
gota de chuva caiu na aldeia. O calor era
insuportável e a presença da lua era sentida

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Pendurado sobre o Abismo

como uma pressão sobre a povoação. O leito
do rio Ponnami emergira completamente
seco e as casas-barco, que há muito não
flutuavam, acabaram por ficar presas na
areia seca do rio. Pouca água havia para
beber, senão a que sobrava em alguns poços.
A comida era escassa, restando apenas os
coqueiros e alguns animais.

Yamir e Maya eram agora dois
adolescentes. Anushka havia falecido de
insolação enquanto trabalhava e Maya
tomara o seu lugar na plantação de chá, para
ajudar a família. Yamir continuava a ir à
escola. Para visitar Raul, com quem
continuavam a aprender geografia e línguas
como inglês e espanhol, os irmãos

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atravessavam a pé o leito do rio Ponnami.
Raul recebia os dois irmãos como quem
recebe a única alegria do dia. O afeto que
sentia por eles tinha-o ajudado a juntar os
pedaços de si próprio que ainda restavam da
sua vida anterior. A alegria e motivação em
ensiná-los e em vê-los crescer, sobretudo
depois da morte de Anushka, faziam-no
acreditar que ainda tinha algo para dar na
vida. Kamir, sem a presença da mulher
sentia-se cada vez mais velho e fraco.

Desde que começara a trabalhar nas
plantações de chá, Maya começara a ter
sonhos estranhos, sendo frequente sonhar
que a aldeia era engolida por grandes
labaredas. Um dia confidenciou ao Pai os

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Pendurado sobre o Abismo

sonhos que tinha e Kamir reconheceu
imediatamente que a sua filha padecia do
mesmo tormento que a sua mulher. Os
campos de chá invadiam-nas de visões
oníricas. Ao conversar com Raul sobre o
assunto, este não estranhou e fê-lo reparar
que desde que a lua-cheia invadira o céu, a
aldeia tinha-se tornado num local estéril.
Não só os campos deixaram de produzir
como não nasciam crianças desde há cinco
anos. “É uma aldeia de barrigas estéreis”,
disse Raul. Kamir desatou num pranto de
profundo desespero, gritando furiosamente
ao deus Shiva, por querer transformar a vida
na morte e depois a morte em vida.

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No dia seguinte um violento incêndio
despoletou, fazendo desaparecer as árvores
da aldeia e o que restava dos campos
agrícolas. O incêndio atingira tamanhas
proporções que invadiu as plantações de chá,
apesar dos esforços dos capatazes e dos
trabalhadores para evitar que isso
acontecesse. Alguns dos animais que viviam
na floresta tinham conseguido fugir para a
povoação. À noite, em redor da aldeia, havia
um deserto de cinzas. Kamir, desesperado
foi procurar a ajuda de Raul pois a sua filha
Maya não tinha regressado do trabalho.

Ao amanhecer, a super-lua tinha
desaparecido. Os animais encontravam-se
reunidos na aldeia. Os paquidermes

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Pendurado sobre o Abismo

viajantes decidiram que tinha chegado a hora
de todos partirem e, reunido consenso,
lideraram o grupo na viagem que iriam fazer
ao longo do rio Ponnami até chegarem ao
mar.

Os aldeões ao verem os animais partir,
reuniram-se com o ancião da aldeia para
decidir o que fazer. Arjun disse: “a lua
despareceu e uma violenta monção
regressará. É melhor seguirmos com os
paquidermes”. Após aceso debate, em que os
receios de uns de partir para o desconhecido
foram vencidos pelos medos de outros, em
ficar numa aldeia deserta que seria varrida
pelas chuvas torrenciais, a maioria dos
habitantes concordou em partir. Exceto

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Elsa Alves

Kamir que decidiu ficar, pois sentia que o
seu lugar era ali, à espera da sua mulher e da
sua filha. Kamir explicou: “quando a minha
mulher e a minha filha regressarem dos seus
sonhos eu estarei cá para cuidar delas”. Os
outros habitantes, incluindo Raul, ainda
tentaram demovê-lo mas desistiram ao ver
que os olhos de Kamir já não os ouviam.

Negras e pesadas as nuvens
acumularam-se no céu à espera da ordem dos
deuses para descarregar. Os aldeões já
tinham partido juntamente com os animais.
Raul e Yamir estavam dentro da casa-barco.
Raul sabia que quando a chuva viesse o rio
Ponnami iria ressuscitar cheio de vida e que

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Pendurado sobre o Abismo

a casa-barco os iria guiar e proteger na sua
viagem rio abaixo até ao mar.

Yamir sentiu um crescente entusiasmo
que não cabia dentro de si. Do berço
lamacento do rio à efémera liberdade no ar,
Yamir sabia que uma nova vida estava
prestes a começar. Bendito dilúvio.

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‫مدينة الموتى‬
A Cidade dos Mortos

Faz cinco meses que Carmen e Olívia
faleceram. Numa noite fria de nevoeiro, o
regresso a casa não chegou a acontecer pois
algo se atravessou na estrada fazendo com
que o carro de Carmen capotasse pela berma
abaixo. A ansiedade que Raul sentira pela
demora da mulher e da filha, fora
abruptamente interrompida para lhe
comunicarem que não valia a pena esperar

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Pendurado sobre o Abismo

mais. Naquele momento, a sua vida ficou
suspensa.

Raul está sentado na cadeira do
consultório. As perguntas do psicólogo
sucedem-se na sua cabeça, sem conseguir
decidir a qual delas responder. Acaba por
desatar num pranto provocado pela dor
inominável que ocupa todo o seu ser. A
consulta termina, com mais uma dose de
comprimidos para dormir. À noite, enrola-se
na cama como se pudesse aninhar no colo da
sua mãe. Mas também ela já partiu. Está só,
está terrivelmente só. Não consegue dormir
sem acordar vezes sem conta à procura de
Carmen junto a si. Quando percebe que ela
não está, levanta-se e vai até ao quarto de

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Olívia. Também não está. Anda pela casa de
um lado para outro inquietado pelo vazio e
pela solidão. Lembra-se das palavras do
psicólogo, “Raul, um dia tem de começar a
falar”. Sente-se invadido pela raiva, afinal
aquilo não pode ter acontecido. Se calhar
não aconteceu, é apenas um pesadelo
repetido dia após dia. E se aconteceu, porquê
a ele? O que fez de mal? Por vezes, sente que
ouve as vozes de Carmen e Olívia a
conversar, ou o riso de ambas enquanto
brincam. Outras vezes sente Carmen a andar
pela casa. Abre a porta do seu quarto para
confirmar se Carmen está. Não, não está. Já
não estão, partiram. Raul chora. Que sentido
tem a vida? Aos poucos a ideia de fugir

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Pendurado sobre o Abismo

daquele lugar vai ocupando a sua mente
vazia.

Raul, carrega uma mochila com
algumas roupas e alguns artigos de higiene.
Leva consigo uma fotografia dos três,
felizes, no verão passado. Vendeu a casa, o
carro, despediu-se da escola, onde ensinava
geografia. Não deu explicações a ninguém.
Apenas comprou um bilhete de avião para a
Cidade dos Mortos.

No dia em que Raul chega à Cidade dos
Mortos estava um calor sufocante e o suor
escorria-lhe pelo corpo. A cidade parecia um
cemitério gigante com casas e ruas
construídas entre túmulos formando um

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conjunto caótico. Raul vagueou pela cidade
horas a fio. Contornou as sepulturas que
podiam estar dentro dos quintais das casas,
como também no meio de ruas e jardins.
Umas estavam pintadas de cores coloridas
outras já perderam o tom que outrora as
embelezara. Sentou-se à sombra de uma
grande árvore a descansar. Observou que na
casa em frente uma idosa estendia roupa
lavada num estendal entre duas sepulturas.
Ficou a olhar para todo o rebuliço das ruas
poeirentas, cheias de crianças a brincar e a
jogar à bola e velhos sentados à conversa.
Um jovem dos seus vinte anos, de olhar vivo
e rosto sorridente, aproximou-se dele e
perguntou-lhe de onde vinha.

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Pendurado sobre o Abismo

«Vens de longe?»
«Sim, venho de Espanha», respondeu
Raul.
«Já ouvi falar desse lugar», retorquiu o
rapaz. «Como te chamas?»
«Raul. E tu?»
«Husani. Vivo naquela casa. É a minha
avó» e apontou para a casa onde a idosa
estendia a roupa. «Queres uma limonada
Raul?» Levantou-se e foi buscar duas
limonadas com hortelã e mel a uma banca de
venda de sumos.
Raul agradeceu, enquanto saboreava
aquele aroma amargo mas também doce que

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lhe refrescava a garganta e o corpo.
«Aquelas sepulturas no jardim da tua casa
são de familiares teus?»

«Estão lá desde sempre, não sabemos de
quem são. Mas aquela sepultura junto ao
lago do jardim é do meu avô. Aqui as
pessoas são sepultadas onde calha».

«Mas porque é que construíram casas no
meio do cemitério?», perguntou Raul.

«Ninguém sabe o que apareceu
primeiro, se o cemitério ou as casas. É tudo
muito antigo. De qualquer forma as casas
aqui são mais baratas e o local é sossegado à
noite. É um bom sítio para se viver, temos
tudo». Husani refletiu um pouco e disse

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Pendurado sobre o Abismo

«Bem, o cemitério deve ser mais antigo do
que as casas. Estás a ver aquelas casas no
alto da colina?» - e apontou para umas
catacumbas desabitadas, com um barco à
porta - «os antigos contam que quando as
pessoas estavam prestes a morrer iam
repousar para as catacumbas e o barco
ajudava-as a atravessar o rio para chegarem
ao céu».

«Mas aqui não existe rio», disse Raul.

Husani levantou-se e perguntou: «já
tens onde passar a noite Raul?». Este abanou
a cabeça e Husani fez-lhe sinal para o seguir.
O interior da casa de Husani estava
extremamente bem limpo. A habitação tinha

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dois quartos, uma sala e uma casa de banho.
Tinha também eletricidade e água. Das
janelas viam-se as tumbas no quintal. A mãe
de Husani preparou-lhes um chá de hibisco
enquanto a avó fixava os olhos em Raul, ao
ponto de este se sentir observado. Husani
perguntou à mãe se Raul podia dormir lá em
casa naquela noite. A mãe respondeu que
sim, mas a avó, que não tirava os olhos de
Raul, respondeu de forma ríspida e numa
língua que Raul desconhecia, «esta alma está
quase morta, leva-o antes para a colina».
Raul não percebeu o que diziam mas
pressentiu pela forma de falar da avó que
estava na hora de se ir embora. Husani saiu

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Pendurado sobre o Abismo

com ele levando algumas mantas e
dirigiram-se à colina.

«Raul podes ficar aqui. É seguro e
ninguém te vai incomodar». Raul entra numa
das catacumbas e ajeita-se numa cama que aí
se encontra. É ali que vai passar a noite. Raul
deita-se na cama da catacumba. Está noite
adiantada mas no céu brilha uma lua gigante
que ilumina a Cidade dos Mortos. Raul não
tem sono. Sente que todos os seus sentidos
estão despertos e em alerta. Lembra-se do
que lhe disse Husani sobre aquele lugar: «os
antigos contam que quando as pessoas
estavam prestes a morrer iam repousar para
as catacumbas e o barco ajudava-as a
atravessar o rio para chegarem ao céu».

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Recorda-se também da forma de falar da avó
de Husani. Será que foi ela que o mandou
trazer para ali? Estará ele prestes a morrer?

Raul chora. Desde que Carmen e Olívia
morreram sente-se morto por dentro. Como
se toda a tristeza e solidão tivessem entrado
dentro dele, ocupado todo o seu corpo e
alma, roubando-lhe qualquer réstia de
sentido de vida. Como se a única forma de
viver fosse fechado sobre si mesmo, sem
olhar para nada nem ninguém. Seria aquele
o momento em que iria encontrar a sua
morte? O seu corpo está fraco, mas não está
morto. A sua alma está doente, mas não está
morta. Reconheceu a generosidade num
estranho como Husani. Talvez ainda existam

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Pendurado sobre o Abismo

vestígios de vida dentro de si. Raul acaba por
adormecer.

O dia amanhece e a lua gigante
permanece no céu. Raul acorda e sai da
catacumba. O chão está quente e à medida
que anda em direção ao exterior observa a
cidade plana que se estende até perder de
vista. A cor ocre funde as ruas com as casas
e as tumbas como se fosse uma amálgama de
coisas. Inspira profundamente o ar fresco da
manhã sentindo-se bem. Raul percebe que
ainda não morreu e olha a super-lua, que
permanece imóvel.

Husani vai à procura de Raul e encontra-
o sentado num banco à porta da catacumba.

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Sorriem-se. Husani traz um pouco de pão e
limonada que dá a Raul. Este agradece e
come com gosto. Raul pergunta a Husani se
pode beber água de um dos poços que ali
existem. Husani diz-lhe que sim, e sorrindo
comenta que lhe fazia bem tomar um banho.
Combinam encontrar-se mais tarde na
cidade.

Raul toma um banho, o primeiro em
muitos dias e veste roupa lavada. Dirige-se
para a praça da cidade onde combinou
encontrar-se com Husani. A manhã vai alta,
e as ruas estão cheias de pequenas lojas onde
se vende tudo, onde se conserta tudo, e de
pequenos bares onde homens bebem e
mulheres tentam atrair as suas atenções.

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Pendurado sobre o Abismo

Também há as escolas que as crianças e
adolescentes frequentam vestindo uniforme.

Husani acena a Raul e os dois
cumprimentam-se. Raul pergunta a Husani
«Já viste esta lua enorme?».

«Sim é uma super-lua, que aparece
todos os anos para a celebração do dia dos
Mortos, que é uma grande festa que dura
vários dias em honra dos que já partiram»,
respondeu Husani. «Tens sorte, este ano vais
poder assistir» continuou. «A mãe e a avó já
estão na cozinha a fazer os preparativos;
logo à noite toda a cidade se transforma».

Raul vagueia pela cidade observando a
expressão sorridente das pessoas, algumas

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com poucos dentes, vestidas com roupas
velhas e a maioria descalças. Via-se que
viviam com pouco, mas assim que se
aproximavam expressavam largos sorrisos
oferecendo logo algo para ele comprar. Um
dos artesãos locais trabalha sentado num
pequeno banco fazendo estatuetas de barro
que depois vende. Raul compra-lhe uma.
Enquanto isso uma mulher de lábios
vermelhos aproxima-se dele insinuando-se.
Não percebendo uma palavra do que ela
dizia, Raul compreende bem o que a traz ali.
O artesão afugenta-a e ela responde-lhe
como se estivesse a lançar-lhe má sorte.

Numa das ruas está uma padaria cujo
aroma invade todos os sentidos. Tem uma

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Pendurado sobre o Abismo

bela tabuleta dourada com o nome inscrito.
Enquanto procura no pequeno dicionário o
significado do nome da padaria, Husani
aparece e diz-lhe «Para viver é preciso
morrer. É o nome da padaria». Entram os
dois e partilham um pão acabado de cozer.

À noite a Cidade dos Mortos está toda
enfeitada de luzes, flores e decorações que
são colocadas nos túmulos. As pessoas na
rua partilham comida que fizeram e as
bebidas que trouxeram, sobretudo cerveja e
chá de hibisco. Os mais pobres e as mulheres
que se vendem para sobreviver, sem nada
para partilhar, aproveitam a abundância e as
iguarias para matar a fome.

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Uma família de seis de pessoas,
constituída pelos pais e quatro filhas, vêm de
longe de propósito à festa para honrarem o
patriarca da família. Este homem que a vida
tornou abastado, nasceu na Cidade dos
Mortos e, quando chegou o momento, quis
cumprir a tradição secular morrendo numa
catacumba e sendo enterrado num quintal
alheio. Naquele ano a família esperava,
como habitualmente, voltar a ver o ancião.
Enquanto aguardavam que este aparecesse,
as filhas, raparigas habituadas a confortos
vários e que pouco apreciavam aquelas
tradições, olhavam os aldeões de soslaio,
procurando afastar os rapazes mais atrevidos

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Pendurado sobre o Abismo

cuja única intenção era divertirem-se com
elas.

A festa vai longa, iluminada pela super-
lua. Raul e Husani comem e bebem à
vontade. A certa altura Raul observa que
algumas pessoas se deslocam com muita
leveza, falando com alguns dos locais mas
sem tocar na comida. Husani apercebendo-
se da inquietação na cabeça de Raul diz-lhe
rindo-se «são os fantasmas do cemitério». E
os dois riem-se, sob o efeito do álcool.

No dia seguinte, Raul acorda na
catacumba com a sensação de que a cabeça
vai rebentar. Não se recorda como ali
chegou, mas certamente que o seu amigo

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Elsa Alves

Husani o terá ajudado. Lembra-se
vagamente da festa, dos risos e gritos e das
raparigas com ar chique. Está cheio de sede
e pressente que o seu bafo é igual ao de um
dragão. «Está na hora do banho», diz.

Raul descansa na catacumba e lembra-
se de Carmen, daquele dia solarengo de maio
em que caminharam de mãos dadas sobre um
campo florido junto às arribas da praia.
Lembra-se de como fizeram amor aninhados
numa reentrância nas rochas e o mundo
parecia eterno. Duas grandes lágrimas
percorrem o rosto de Raul e num ápice toda
uma torrente de sofrimento desaba sobre ele.
Contorce-se de tanta dor e chora, chora
muito. Husani assiste àquele momento e

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Pendurado sobre o Abismo

também ele sente a dor de Raul. Sentindo a
presença de Husani, Raul recompõe-se.
Decidem então ir beber alguma coisa a uma
das tascas da cidade.

Raul conta a sua história a Husani que a
ouve com atenção. Husani diz-lhe «para
morrer é preciso estar vivo, mas para viver
às vezes temos de morrer primeiro».
Continuou «A tua mulher e a tua filha estão
bem. Logo verás».

À noite a festa em honra dos mortos
repetiu-se. Havia bebida e comida para
partilhar. A noite estava particularmente
brilhante com aquela super-lua. Com o
avançar da festa, Raul voltou a reparar

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naquelas pessoas sorridentes que se
deslocavam com extrema leveza, como se os
pés não tocassem no chão, e que transmitiam
uma paz infinita. Antes de fazer a pergunta a
Husani este antecipou-se e disse «são os
mortos que vêm à festa para reencontrar os
vivos». Raul surpreendeu-se com a resposta
mas foi incapaz de reagir àquelas palavras.
Husani procurou responder aos pensamentos
de Raul «A Cidade dos Mortos é o único
lugar que conheço onde os mortos podem
retornar ao mundo dos vivos e serem vistos.
É o único lugar onde pode existir contacto
entre os que se julgam vivos e os que
efetivamente já morreram». Raul olha para
Husani sem saber o que dizer, acabando por

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Pendurado sobre o Abismo

balbuciar, «mas os mortos não repousam nos
túmulos? Nunca os vi sair de lá». «Não, os
mortos são enterrados nos túmulos mas
depois partem para um submundo onde
vivem». Husani continua a explicação «O
Egipto está cheio de túneis e câmaras
construídos no tempo dos faraós. A extensão
é incalculável. Ninguém a conhece. É aí que
vivem os mortos».

Raul tenta processar aquela informação
mas é sacudido pela pergunta que Husani lhe
faz, «Queres ver a tua mulher e a tua filha?».
«Elas estão aqui?» pergunta Raul. «Agora
não», responde Husani, «mas posso levar-te
ao local onde estão». Raul fica atónito com
aquela revelação e logo lhe responde

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Elsa Alves

afirmativamente. Husani diz-lhe «pega nas
tuas coisas».

Raul vai à catacumba e arruma as suas
coisas. Segue Husani através daquela noite
iluminada. Não sabe quantos quilómetros
andaram, até chegarem ao deserto. Raul está
cansado e já duvida da sanidade de Husani.
Este, adivinhando o seu pensamento, diz-lhe
«estamos quase lá».

Raul e Husani chegam à entrada de uma
caverna e Husani revela «É aqui. Espera um
pouco». Husani entra mas demora-se um
pouco e Raul fica impaciente. Chega a
pensar que se trata de uma partida. Começa
a reflectir que sendo a lua tão brilhante, se

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Pendurado sobre o Abismo

fosse necessário regressaria à Cidade dos
Mortos, sem se perder no deserto. A certo
momento, vê Husani aproximar-se com duas
figuras femininas vestidas de branco. Em
choque reconhece Carmen e Olívia.
Precipita-se para elas mas Husani faz-lhe um
sinal para parar. Raul chora
compulsivamente. Carmen, sorrindo
aproxima-se dele e afaga-lhe o cabelo. Raul
sente algo de muito leve a tocá-lo. Olívia
corre para Raul abraçando-o, e este sente
como se uma brisa o tocasse. Os três sorriem
e Carmen diz, «meu amor estamos bem. Está
tudo bem. Um dia voltaremos a estar juntos
outra vez».

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Elsa Alves

Husani faz sinal a Raul para se irem
embora. Raul despede-se de Carmen e da
filha com um sorriso. O seu coração está
apaziguado e a alma está cheia.

No regresso, Raul caminha em silêncio
procurando reter na sua memória todos
aqueles incríveis acontecimentos, o rosto e o
sorriso de Carmen e de Olivia. Sente uma
paz interior por saber que Carmen e Olivia
ainda viviam, não no mundo dos vivos mas
noutro lugar onde estavam em paz. Sentiu
que a ligação que experimentara naquele dia
o iria alimentar para o resto da sua via.

Chegados à Cidade dos Mortos Husani,
diz-lhe, «Raul o teu tempo aqui acabou.

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Pendurado sobre o Abismo

Morreste mas estás vivo. Já podes partir e
viver». Raul sorri e agradece a Husani toda a
sua ajuda. Num impulso Raul precipita-se e
tenta abraçar Husani mas sente apenas uma
brisa a atravessar o seu corpo. Husani ri-se e
afasta-se.

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