'Hoje é o dia depois de anteontem' (Carlos Aleluia, 2021) - PDF Flipbook

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Hoje é o dia depois de anteontem

Carlos Aleluia

HOJE É O DIA
DEPOIS DE ANTEONTEM

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Carlos Aleluia

Hoje é o dia depois de anteontem
por Carlos Aleluia
(2021, oficina do conto: projecto final, 19 páginas)
Formadora: Carlota Gonçalves

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Hoje é o dia depois de anteontem

A Lúcida Ode de Outrora

Portanto... a única doença sem cura.
Uma pessoa em cada onze milhões,
mais coisa menos coisa. Pelo menos foi o
que me ficou na retina dos dados que
acabaram de passar pelo meu olhar, ainda
dormente do choque que acabara de ser
vítima.
Choque? Talvez essa não seja a palavra
indicada. A total sensação de torpor que me
chegava do corpo inteiro parecia persuadir-
me que tinha sido um impiedoso relâmpago,

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Carlos Aleluia

daqueles que não é preciso esperar muito até
se ouvir o trovão subsequente.

O médico continuava a falar, mas eu
não o conseguia acompanhar. A minha mãe,
também ela neurocirurgiã de profissão,
sempre me disse que, depois de um
dramático diagnóstico, independentemente
do que ela explicasse ao paciente, este não
seria capaz de reter o que quer que fosse.
Mas isso eram outros tempos, claro. Nessa
altura, os profissionais de saúde ainda
sabiam lidar com situações de vida ou de
morte. Tendo em conta a estatística, este
médico seria quase tão azarado como eu se
esta não fosse a primeira vez que
diagnosticava esta enfermidade a um
doente.

"Lamento imenso", eram as palavras
que aparentavam escapulir-se, em ciclo, por
entre os seus constrangidos lábios. Ainda

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Hoje é o dia depois de anteontem

assim, eu acredito que, caso estivesse a
prestar atenção, aperceber-me-ia de que ele
estava a dizer muito mais. Provavelmente,
pena era simplesmente o único sentimento
que eu queria, e conseguia, transmitir a mim
mesmo.

Como é que se encara a morte num
mundo em que já ninguém perece? Em que
toda a gente se limita a definhar
morosamente pelos longuíssimos anos da
sua vida até não ser mais capaz de
compreender quem é, o que fez até ali,
porque é que continua aqui.

Claro que a brutal injustiça que se
desenrolou perante mim foi das primeiras
coisas que me sobrevoou o pensamento. Mas
também se esfumou com igual celeridade: de
que servia ter razão se a decisão final do
destino já estava tomada?

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Carlos Aleluia

Logo a seguir, pensei em tudo o que
desejei um dia fazer. Contudo,
estranhamente, deixei de ser capaz de adotar
esses anseios como meus. Foi como se
pertencessem a outra pessoa, que viveu há
muito tempo atrás. Tal como os sonhos que
já tinha sido capaz de concretizar, estes
pertenciam agora, inexoravelmente, ao
passado.

A sensação mais peculiar que me
chegou ao ser foi antes uma de ainda mais
complexa explicação. Em toda a minha
existência até este preciso momento, nunca
me tinha dado conta da finitude da mesma.
Porque deveria, afinal de contas? Se eu só
fosse desaparecer deste mundo quando já
não mais tivesse noção disso, na minha
mente, viveria para sempre.

Será que é isto que significa,
plenamente, estar vivo? Enxergar a meta de

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Hoje é o dia depois de anteontem

chegada e enfrentá-la de cabeça erguida, não
por não a temer, mas sim para aproveitar a
vista? Compreender que há um período
confinado de tempo no qual temos de
escolher coisas que o preencham - pois outra
das importantes ilações de que me apercebi
foi que não são as tarefas que nos ocupam,
mas antes nós que somos ocupados por
tarefas - e coisas por que abdicar? Entender
o que queremos levar daqui connosco e,
principalmente, já que não somos mais do
que um passageiro sem bilhete neste breve
vaivém, o que queremos que fique cá de nós?

Talvez seja esta a mais bonita lição que
a vida me deu: aprender e desaprender todos
os dias de que é que esta se trata e, de alguma
forma misteriosa, estar sempre
redondamente enganado.

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Carlos Aleluia
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Hoje é o dia depois de anteontem

O Inexorável Canto do Abismo

Assim que regressei a casa, reparei que
tudo estava tal e qual como eu tinha deixado,
o que gerou em mim uma inquietação
premonitória. Espreitei para a cozinha e
reparei que ainda estava lá o pequeno-
almoço preparado pelo nosso robot
doméstico, sem que ninguém lhe tivesse
tocado. A porta do quarto mantinha-se
entreaberta, a escuridão do seu interior a
espalhar-se para o corredor como tentáculos,
também eles a fugir do desespero.

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Carlos Aleluia

Respirei fundo, preparando-me para a
tempestade emocional que se anunciava.
Muito embora de todas as vezes eu me
tentasse manter composto, em nenhuma era
capaz de o fazer. Abri a porta.

Lá estava ela, deitada na cama,
totalmente às escuras, não fosse o reduzido
ecrã luminoso que o seu dedo deslizava
infinitamente para cima e para baixo.
– Bom dia – comecei, nervosamente
anunciando a minha presença. – Ainda estás
deitada? – Foi uma daquelas perguntas
parvas das quais já sabemos a resposta, só
não sabemos exatamente explicar porque as
enunciamos em primeiro lugar.
– Sim. – respondeu baixo, limpando a
garganta depois.

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Estava incerto se esperava obter mais
do que aquilo. O que iria ela fazer além de
constatar o óbvio?
– Fui correr, e está um tempo maravilhoso lá
fora. – Tentei vender a ideia da melhor forma
que pude. – Não queres dar uma volta?
Aproveitar o dia. – Esforcei-me por esboçar
um sorriso.
– Hum... Não me apetece muito ir. -
retorquiu, a sua voz exprimindo cansaço que
eu sabia ser inexistente. – Mas vai tu. –
sugeriu, evitando qualquer contacto visual
até ao momento.
– Eu acabei de vir da rua. – expliquei. –
Gostava era de ir contigo.
– OK, mas eu não me sinto com vontade de
sair - respondeu com maior secura.

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Carlos Aleluia

Respirei fundo. Aproximei-me dela e
passei, ao de leve, a minha mão pelo seu
ombro, acariciando-a.
– Fala comigo, por favor. Conta-me o que se
passa. Só te quero ajudar.
– Como assim, o que se passa? Eu não tenho
nada.

Pousei a mão no telemóvel dela,
incitando-a a desligar o ecrã, e depois forcei-
me no seu campo de visão.
– Isto não é de agora. Tem vindo a arrastar-
se ao longo de meses, e cada vez está pior. –
tentei explicar-lhe da forma mais delicada
que consegui. – Raramente sais do quarto,
saltas refeições. Não te vejo com interesse
nas coisas que antes te deixavam contente.
Estou preocupado.

Ela finalmente olhou para mim.

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– É isso que tu não entendes. – respondeu,
quase de forma acusatória. – Eu não tenho
nada. Isto é simplesmente como eu me
sinto.

– Tens de combater isso. Não te podes
entregar assim. – supliquei-lhe.

– O que é que tu sabes sobre como eu me
sinto. –inquiriu.

– Se eu não entendo, então explica-me, por
favor.

– Posso estar o dia todo a ver filmes ou a
ouvir música, mas, no fim de contas, tudo me
parece fútil. Simplesmente não sinto
motivação para nada. – desabafou. – Todos
os dias me são iguais.

– Mas preferes passar todo o tempo assim?
Nós vivemos numa era em que podemos
finalmente fazer o que quisermos. – tentava

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Carlos Aleluia

expor-lhe o que pensava ao mesmo tempo
que estava assustadíssimo com as palavras
dela. – De certeza que há alguma coisa que
ainda queiras fazer.

– Qualquer coisa que eu faça, é inútil. Até a
mais primitiva das máquinas faz dez vezes
melhor que eu. Acho que o nosso problema
é ainda não termos percebido que o nosso
tempo chegou ao fim: construímos um
mundo perfeito, e já não temos cá espaço
para seres imperfeitos como nós.

– A Humanidade construiu esta sociedade
para ela própria: para nos podermos dedicar
a cem por cento ao que nos faz feliz.

– Qual é o sentido da nossa vida, então?
Passar todo o nosso tempo a ver séries, a ler
ou a pintar? É isso que nos faz feliz? Mesmo
que possamos visitar qualquer sítio do
mundo, é só para isso que cá estamos? Para

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encontrar algo que nos ocupe o tempo? Se é
só isso que estamos cá a fazer, eu já vi o
suficiente.
– Não digas uma coisa dessas, por favor...
– Porque é que eu hei-de ter medo de dizer o
que sinto? – inquiriu. – Se não há nada que
me prenda cá, porque hei-de continuar?
– Se não queres fazer esse esforço por ti,
pensa nos que gostam de ti. Na tua família.
Em mim. – implorei-lhe, o meu rosto
transfigurado em dois rios. – Podemos
dedicar-nos a fazer felizes aqueles de quem
gostamos.
– O verdadeiro problema surge quando nos
odiamos mais do que gostamos dos outros.

Não soube o que responder. Acabei
também por me entregar àquele momento,
esforçando-me apenas por secar as lágrimas

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Carlos Aleluia

que ainda permaneciam no meu rosto.
Passados uns instantes, ela desviou o olhar e
fitou o chão, como se sentisse que me tinha
desiludido também. Queria poder
reconfortá-la, mas estava igualmente sem
forças. Ela voltou a ligar o ecrã do telemóvel
e eu saí do quarto como tinha entrado: em
pezinhos de lã, quase como se tentasse
disfarçar a minha presença. Todos os dias
pensava que daquela vez seria diferente, que
daquela vez seria capaz, mas todos os dias
percebia que tinha subestimado o quão
difícil é trazer alguém de volta à vida.

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O Incerto Hino da Esperança

– Quando for grande, quero ser como tu. –
Aquelas palavras, proferidas tão
levianamente pela criança que me confiava a
sua bola de futebol, para que a assinasse e a
entregasse de volta, atingiram-me como um
chicote.

Foi daqueles momentos em que é
obrigatório sorrir e agir normalmente,
tentando dissimular ao máximo o
funcionamento acelerado do cérebro em
plano de fundo. Felizmente, estava tão

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Carlos Aleluia

habituado a sessões de convívio com fãs que
fui capaz de continuar a assinar e a tirar
fotografias com centenas deles ao mesmo
tempo que me perdia nos labirintos
armadilhados da minha mente. Não vou
mentir e dizer que não aprecio o carinho
demonstrado por tanta gente, mas suponho
que nós, jogadores de futebol, sofremos do
mesmo mal que os médicos, só que em
sentido contrário: ficamos dormentes a
emoções fortes depois de lidarmos com elas
todos os dias.

À medida que ia envelhecendo, era
cada vez mais cruciante acreditar que eu,
conhecendo-me tão desprimoroso e
disfuncional, fosse o pináculo de toda uma
geração. No fundo, eu invejava as crianças:
se alguém devia ter o direito de poder dizer
“quando for grande, quero ser como tu”, era
eu.

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Ainda assim, servia-me de algum
conforto compreender que o que aqueles
jovens verdadeiramente desejavam era ter a
minha carreira, a minha profissão.
Especialmente tendo em conta que era a
única carreira, a única profissão.

Esta era a dura realidade do nosso
tempo: o único trabalho que a automatização
não tinha erradicado era o de profissional de
alta competição. E a razão para isso é do
mais trivial (e triste) que se pode imaginar: o
futebol vive de erros e, se ninguém errar, este
não tem nada de atrativo.

Por vezes sinto que é curioso assimilar
a ironia desta situação. A única razão pela
qual não fomos substituídos neste setor é
porque falhar é fundamental, e não fomos
(ainda) capazes de encontrar nenhuma outra
coisa que erre de uma maneira tão acertada
como nós.

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Carlos Aleluia

Será que devia considerar, então, que
falhar é a nossa mais importante qualidade?
Além desta fatídica característica, o que
mais nos distingue como seres humanos,
singularizando-nos das nossas próprias
criações, como marca da nossa identidade?

Ou será que devia antes entender esta
peculiaridade como uma maldição a que
estamos presos e da qual nunca nos
livraremos, como uma cruz que
carregaremos connosco até ao fim da nossa
existência?

A adoração de que estava a ser alvo por
parte de tanta gente não me permitia ver esta
condição como uma fraqueza. Se havia algo
que este quase incompreensível interesse das
pessoas por continuar a assistir ao erro
(quando podiam desfrutar da praticamente
inesgotável qualidade dos protótipos
construídos para substituir os jogadores)

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demonstrava era que continuamos
apaixonados pela imperfeição. Mantemo-
nos fascinados com os defeitos porque todos
nós somos construídos à base deles.
Desfrutamos da nossa capacidade de
ultrapassar a condição de incompletos e de
nos superar porque reconhecemos a
dificuldade e o esforço necessário para lá
chegar.

Decidi que, a partir daquele instante,
viveria a minha vida de forma diferente. Por
mais dificuldades que se atravessassem no
meu caminho, iria continuar a defender
incessantemente perante os outros que o
mundo é o lugar que deveria ser, para que
eles próprios acreditassem nessa luz quando
fosse a sua vez de moldar o futuro.

No fundo, talvez isso já nem fosse
assim tão diferente do que estava a fazer
naquele preciso momento, enquanto, embora

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perdido nos meus próprios receios, tentava
sorrir às crianças que chegavam ao pé de
mim e procurava incentivá-las a acreditar no
seu sonho.

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