'Escorria água das paredes azuis' (Tânia S. Ferreira, 2020) - PDF Flipbook

nextart EXPO 2021 Todos os direitos reservados. All rights reserved. www.nextartexpo.net

98 Views
45 Downloads
PDF 15,710,124 Bytes

Download as PDF

REPORT DMCA


Escorria água das paredes azuis

Tânia S. Ferreira

ESCORRIA ÁGUA
DAS PAREDES AZUIS

1

Tânia S. Ferreira

Escorria água das paredes azuis
por Tânia S. Ferreira
(2021, oficina do conto / short story: projecto final, 18 páginas)
Formadora: Carlota Gonçalves

2

Escorria água das paredes azuis

VIAGEM

Para lá das montanhas amarelas,
depois do sítio onde os rios se cruzam e
passando o bosque dos animais que fazem
sons esquisitos, há um jardim.

Nesse jardim vive o André. Quer dizer,
o André habita uma casa envolta de árvores
e videiras, mas o André vive mesmo é no
jardim, passa lá todo o seu tempo. A
observar insectos e flores. A comer azedas e
a escolher trevos. A correr em torno dos
limites dos campos que envolvem a casa.

3

Tânia S. Ferreira

Nessa casa existem muitas janelas, mas só
uma porta, a da entrada. Lá dentro para
aceder a cada quarto tem de se atravessar
cortinas de flores silvestres que com o vento
estão sempre a baloiçar.

E foi assim, num dia de vento que o
André ao chegar a casa descobriu que a
passagem para o seu quarto tinha
desaparecido, no seu lugar estava agora uma
parede.

Piscou os olhos e piscou novamente,
mas a parede continuava lá. Apalpou o frio
da tinta, tocou com os dedos uns nos outros,
apertou as mãos, fechando-as.

Não estava lá a passagem. Como podia
ser? Como entraria no quarto para dormir?
Como iria brincar ou fazer os afazeres da
escola?

4

Escorria água das paredes azuis

Olhou em redor e pareceu-lhe ouvir ao
fundo a voz do avô a cantarolar, vinha de
longe. O avô estava em casa… “Avô!” –
chamou. Nada. Continuava a ouvir a sua
voz.

Encostou o ouvido à parede e sentiu
humidade nas orelhas.

Chegou-se para trás, olhou em redor,
as paredes estavam molhadas como se
tivesse chovido dentro da casa, mas as
janelas estavam fechadas, na sala de estar
mergulhava-se numa escuridão estranha.
Afastou as cortinas, entrou e procurou o
interruptor do candeeiro. No tiro dourado da
luz viu o soalho cheio de poças de água…
cheirava a maresia.

O avô continuava a cantar ao longe.

Escorria água das paredes azuis e
líquenes. Havia peixes aos pulos no chão,

5

Tânia S. Ferreira

estrelas marinhas, conchas. O avô
continuava a cantarolar e ao centro, no tecto
estava um cetáceo azul. Uma baleia.

Caiu no chão com o estrondo daquele
ser que como um candeeiro estava
pendurado no centro do espaço, a pairar
sobre ele. Enorme.

A mesinha do café estava posta, mas ao
redor das chávenas viam-se agora conchas e
pequenos búzios. Ouvia o avô ao longe.

“Avô!” – a voz silenciou-se. “André?!
Estás aí?... estou aqui, na proa… anda cá
filho!”

Passou por baixo da baleia, encostado
aos líquenes que escorriam do tecto, pulando
por entre as poças até à escotilha na parede
da frente da sala que dava para a varanda. O
avô tinha sido marinheiro e gostava de se
sentar no terraço a fumar cachimbo e a

6

Escorria água das paredes azuis

afagar a barba, enquanto bebia a sua
bagaceira. Passava horas com os dedos entre
o emaranhado macio e branco que lhe
enfeitava a face rosada, ao mesmo tempo
que olhava o infinito.

“Já viste o novo candeeiro? Comprei-o
na Feira do Largo de Cima.”

André estagnou perplexo.
“Estava aqui com os meus
pensamentos e decidi, este verão vamos
velejar. Está na hora de levar o meu neto a
ver o oceano por dentro. “

7

Tânia S. Ferreira
8

Escorria água das paredes azuis

A ILHA

Como num voo, aproximo-me da ilha.
O mar está azul e calmo, quente e
brilhante, o sol resplandece sobre o veleiro
que se aproxima daquela forma de peixe que
outrora fora uma montanha entre oceanos e
agora é uma brisa leve de terra como uma
folha de limoeiro nos mares. Uma pequena
porção de vida, com um farol sobre o topo
de um muro escarpado e longo.

9

Tânia S. Ferreira

É final de tarde. Está o céu rosáceo. O
veleiro aproxima-se com a brisa, lentamente.
No seu interior, a minha família.

Eu sobrevoo em torno do veleiro e
observo-os. Sei que vão em busca de um
mundo novo, um sonho sereno.

Pouso sobre o corrimão do farol, por
debaixo da lente óptica repleta de fontes de
luz e espelhos refletores que iluminam a
frente marítima e os orienta na aproximação.
Aguardo. Sinto o meu cabelo na face e nos
lábios ou, melhor, a memória dele. Sigo-os
com o olhar e com o coração. Ainda me
estou a habituar a este corpo novo, se
podemos chamar a isto corpo e às minhas
novas asas. As asas. As minhas asas são
enormes. Os meus pés, são divididos em
quatro dedos, três dos quais com uma
espécie de barbatana amarela. Gosto de
peixe e de mergulhar. Sentir a aragem na

10

Escorria água das paredes azuis

minha plumagem alva. Sentir o vento a
passar. Rir! E fitar baleias, fazendo-lhes
voos rasos, só para as ver submergir nas
águas. Vivo nesta ilha, temporariamente,
volto todos os anos para nidificar nas suas
encostas floridas, repletas de papoilas.

11

Tânia S. Ferreira
12

Escorria água das paredes azuis

A TORRE REDONDA

A primeira vez que fui à Torre
Redonda, viajei até lá através de uma
fotografia a preto e branco.

A torre fica localizada num planalto,
rodeado de árvores, na terra dos guerreiros
nórdicos.

À sua volta existem conjuntos de
estrelas em infinitas constelações, um
papagaio de papel com a cara de um homem
e um anjo com duas asas de leopardo.

13

Tânia S. Ferreira

A lua, alta, brilha sempre toda.

Do cimo da torre, avistam-se planetas.
O acesso ao mirante é feito através de uma
rampa em espiral, única, que tem 209 metros
de comprimento e se enrola 7,5 vezes em
torno do centro oco da torre, de onde se pode
estar no centro do mundo.

Foi do seu topo, ao bater das 7
badaladas, ia o sol a descair que eu vi a
montanha de que vos vou falar.

Esta montanha, é uma montanha
enorme, tão grande que à medida que
olhamos para ela, parece crescer como se o
espaço se contraísse e o tempo dilatasse.

Tão extensa, tão extensa, talvez uma
sequência de montanhas, uma cordilheira.

Tinha campos verdejantes, um verde
vivo, tão profundo que mais parecia um mar

14

Escorria água das paredes azuis

de esmeraldas, cor que só surgia de vez em
vez, quando o sol batia numa das suas
vertentes. Nas outras encostas, haviam
aglomerados de rochas e pedras circulares
cheias de musgo, líquenes amarelos e rosas.
Onde fazia calor.

Naquele momento do tempo quis
percorrer as suas encostas, voei até lá e
fiquei de perto a observar enquanto a
montanha respirava ao vento.

Desejei ser parte da sua cordilheira.

Não consegui conter a minha vontade,
de olhar de perto aquela natureza por mim
não conhecida.

Sussurrei baixinho: “quero estar junto
a ti, montanha!”.

Naquele momento, senti o meu
coração a estremecer, as minhas pernas

15

Tânia S. Ferreira

balançaram, os meus braços estarreceram e
todas as partículas do meu organismo
transformaram-se em algo que não consegui
compreender de imediato.

A última parte do meu corpo que vi
foram as mãos e os meus dedos a ficarem
repletos de raízes e terra.

A última coisa que vislumbrei foi o sol
que raiava por entre as pedras e os campos
da encosta do lado esquerdo daquele
afloramento cárstico, de onde nascia o verde
infinito.

E foi assim que me transformei em
algo inexplicável… um aglomerado rochoso
no meio de um oceano rebelde e
incontrolável. Uma ilha. O espaço que viria
a ocupar na minha mente seria agora um
local longínquo dali.

16

Escorria água das paredes azuis

Essa pequena ilha, quase uma colina no
meio do mar, em forma de baleia, era eu…
um lugar de onde não avistava a montanha
do meu desejo.

Passou o Verão e os meus olhos
alimentaram-se de um oceano de ondas
grandes e frias. Veio o Outono e depois o
Inverno; foi então que percebi que o meu
desejo me tinha levado a um mundo distante.

Chorei, chorei noites sem fim, dias e
noites sem término à vista.

Fiquei muito cansada da quantidade de
água que vertia dos meus olhos.

Fiquei tão cansada que adormeci
profundamente, um sono exausto e
precursor.

17

Tânia S. Ferreira

Na aurora em que despertei, os
pássaros chilreavam sobre as minhas
encostas.

O sol ainda não tinha nascido e senti
uma brisa acariciar-me o manto verde que
agora me cobria. Acordei… e nos primeiros
raios da manhã presenciei o despertar da
minha nova capa de papoilas. Os meus
campos verdes tinham milhares de flores
carmins. Pequenas, vermelhas e oscilantes
flores. Imensas. Devo ter dormido anos
seguidos.

Junto ao meu centro, existia um
limoeiro alto, os seus limões eram grandes e
inacessíveis; em torno das minhas rochas
haviam crescido roseiras bravas de rosas
brancas e em torno do meu coração,
cheirava, agora a praia.

18

Escorria água das paredes azuis

Fiquei por momentos atordoada com
tanta cor e com a brisa marítima que me se
me entranhava. Joaninhas voavam ao meu
redor e pousavam no meu manto.

Insectos coloridos e abelhas tentavam
colher pólen das minhas flores amarelas que
nasciam aqui e ali por entre as papoilas. O
oceano cheirava ao fundo e as suas ondas
batiam numa das minhas encostas, a mais
agreste, onde gaivotas faziam os seus
ninhos.

Enfim, era verão. O sol de final de
tarde batia sobre o meu verde e fiquei
acordada noites e noites, só para o ver nascer
no meio do horizonte, mesmo do meu lado
esquerdo. A luz começava por surgir ao
fundo, num céu dourado, de odor a limão e
inundava as águas e as nuvens em todos os
seus poros com tons amarelados, e eu ali
ficava até ao final do dia a vê-lo mexer-se em

19

Tânia S. Ferreira

meu torno e a pôr-se novamente num céu
rosáceo… de um rosa avermelhado intenso.
Os pores-do-grande-astro eram silenciosos e
entravam em todas as ranhuras e saliências
dos corpos.

Um veleiro, com a sua vela branca
aproximava-se. Uma luz do meu alto
acendeu-se em torno, era um farol. Sou uma
ilha, em forma de baleia, com um farol, no
meio do oceano azul rosáceo, de todos os
tons violetas e resplandecentes.

20

Escorria água das paredes azuis
21

Tânia S. Ferreira
22


Data Loading...